domingo, 4 de fevereiro de 2007

A Última tentação de uma data de gente

Esta história que vos vou contar teve lugar nos recônditos de Portugal, mais precisamente na vila de Paradança, em tempos não muito distantes, ou talvez ainda mais perto. Como é que me chegou ao conhecimento? Há quem diga que foi o vento, há quem diga que foi uma águia, há também quem diga que foi tudo fruto duma imaginação doentia e de misturas alcoólicas pouco inteligentes. Fiquemo-nos pela hipótese da águia, que ainda consegue ser a mais credível.

Aviso desde já que quem estiver com pressa, à rasquinha para ir ao WC, com companhia à espera na cama ou desejoso de ver o Tempo de Antena na televisão, é melhor nem começar a ler, que isto é grande como o caraças, com nada mais nada menos que 4 Actos, um Epílogo, umas palavras finais de circunstância e a sempre imprescindível apresentação das personagens:

Engrácia das Coxas Salgadas, figura central desta história, atroz actriz de teatro, triste dona de casa mas espantosa na arte de abanar as glândulas mamárias. Tem um fraquinho por frases elaboradas, não por as compreender mas por achar que quem as profere é possuidor de inteligência superior, logo capaz de compreender o seu talento como actriz. Vive um casamento conturbado com o Jacinto, o que a leva a procurar fora de casa a lenha para o fogo que sente dentro de si.
Jacinto Galo da Costa, honesto traficante de marfim nas horas vagas, respeitado e temido dirigente da “Filarmónica e Cantares Populares”, que lhe ocupa praticamente todo o tempo, levando-o a descurar as necessidades carnais da sua esposa, bem como a ser o único habitante de Paradança a desconhecer a vida tripla da mesma. Ah, e sofre tanto de gases, que de tal alvitrado dos intestinos tendo por banda sonora sons abjectos, Engrácia encontrou ali o motivo para pedir o divórcio. Apenas à conta de muita prenda e de muita porrada a conseguiu a custo demover.
Padre Sevícias, respeitado sacerdote de credo desconhecido, apologista da máxima “faz o que te digo e não olhes para o que eu faço”. O latim é a sua salvação, não pela sabedoria que a língua encerra mas por lhe permitir rematar as conversas com algo ininteligível e logo irrefutável. Rumores afirmam que entre o mulherio de Paradança é conhecido como “vergastamásio saltitão”.
Coronel Martim Louceiro, ganhou a patente a jogar à sueca, pois fez toda a guerra do Ultramar escondido nas camaratas, pagando o anonimato com limpezas sub-umbigais, tendo mesmo assim sido condecorado pelos seus ferimentos em combate (causados quando dormia num veículo que servia de alvo para o treino de artilharia). É o dono do Teatro Frio do Dia (que funciona até às 20:32) e do Bordel Apito da Noite (aberto das 20:47 até de madrugada ou o último cliente se cansar). Em ambos os estabelecimentos trabalham o seu filho e Engrácia.
Xico Louceiro, filho do Coronel, assumido intelectual de esquerda, ostentando com orgulho as suas tatuagens de Marx, Lenine e Trotsky. Tem outra tatuagem, parecida com Mao Tse Tung, mas não tem tanto orgulho devido ao local onde esta foi colocada. É o director do Teatro, lugar obtido por cunha do pai. Gosta de falar uma linguagem só sua, constando que leu pelo menos três vezes o dicionário, por forma a aumentar a sua bagagem vocabular. Quem o compreende diz que fala bonito...

Acto 1 – Jacinto procura conselho junto do Padre Sevícias

Jacinto Galo Costa – Padre, ajude-me! Ajude-me que eu até lhe dou um lugarzinho vitalício lá na colectividade, para assistir de camarote aos ensaios do nosso coro “As Tronchudas de Paradança”.
Padre Sevícias – Homem de Deus, diz-me lá o que te preocupa e não me tentes com essas mer... com lugares cativos, que as minhas recompensas são tudo menos materiais.
JGC - Padre, eu vi com estes olhinhos que a terra há-de comer! A minha Engrácia foi possuída!
PS – Tens a certeza, Jacinto? E por quem desta vez? Quer dizer, por alguma entidade maléfica?
JGC – Qual maléfica! Ela está possuída pela religião! Então não é que lhe apareceu marcado na barriga um crucifixo, olhe, igualzinho ao que o senhor aí tem pendurado? Eu já estava habituado a que de vez em quando lhe aparecesse uma marca parecida com a cara dum tipo de barbas, agora um crucifixo?!? Ainda por cima de pés para o ar! O senhor disse “desta vez”?
PS – Não, percebeste mal. Mas isso é maravilhoso, só pode significar que a tua mulher é visitada por alguma entidade divina. E tu, que fizeste?
JGC – Dei-lhe logo um enxerto de porrada, que eu não quero lá santas em casa. Sempre ouvi dizer que as santinhas não gostam de brincadeira e depois como é que eu me aliviava??? Se agora já a custa a convencer, imagine se ela se torna santa! Ainda me lembro da vez que ela teve aquela infecçãozita e fiquei dois meses à mingua, dois meses! Fiquei a conhecer de cor cada azulejo da casa de banho! E o gato ainda hoje me olha de lado!
PS – Ó Jacinto, isso é uma sine capite fabula. Fazes favor deixa a Engrácia em paz. Asseguro-te que o mais certo é em breve o crucifixo passar a estar na posição correcta. É tudo uma questão de vontade do Senhor.
JGC – E as algarviadas que ela me diz? Não percebo nada, até parece o seu Padre a falar! E logo hoje que eu me tinha apinocado todo. Anda um gajo a gastar uma batelada de dinheiro em perfumes caros e isto tem um efeito repelente nas gajas!
PS – Isso são manifestações que te transcendem, Jacinto. Quando assim for, ajoelha-te e reza com ela. E agora vai-te, meu filho, que se faz tarde. Ah, e manda esse perfume para o lixo, que até a mim me custa estar ao pé de ti.
JGC – Mas eu hoje não pus perfume...

Acto 2 – O Teatro Frio do Dia tenta ensaiar a sua nova peça, “Cleópatra e as serpentes brincalhonas”

Colega de Engrácia – Então, Engrácia, ontem “confessaste-te”?
Engrácia das Coxas Salgadas– Ó filha, várias vezes. Estou aqui que não posso da coluna. O sacana do padre tem é de perder a mania de saltar de cima do armário! Diz que pode não me dar prazer nenhum, mas pelo menos deixa-me espalmadinha! Começo a duvidar se este será o melhor caminho para ter a absolvição pelos meus pecados!
Xico Louceiro – As gentis espécimes do género venusiano pretendem no espaço-temporal presente encetar o ensaio ou optaremos por uma cúpula colectiva e intemporal?
ECS – Ai o menino Xico tem uma forma de falar que me derrete toda! Mas fique sossegadinho que ainda estamos a aquecer...
XL – Sei bem o que almejais, minha bípede provida de glândulas mamárias celestiais, mas no momento tenho de insistir que vos limitais à recitação da partitura.
ECS- Hã?
XL – Lê o texto, Engrácia. Começa em “O veneno áspide...”
ECS – “O veneno áspide da tua bondade torna-me a Cleópatra do teu reino”. E isto quer dizer o quê, Xiquinho?
Coronel Martim Louceiro – Quer dizer que se ele puder te enfia a áspide pelo teu reino adentro, Engrácia.
XL – Pai, não lhe tinha já dito que não gosto que me interrompa os ensaios?
CML – E eu não te tinha já dito que quero é que tu metas as gaijas a esfregarem-se sensualmente no poste? Porra, Xico, os animais que cá vêm querem é mamas, estão-se a borrifar para os lirismos!
XL - Um retrógrado regride radiante ruidosa e renitentemente, enquanto abre um sorriso para o futuro incógnito e definido.
CML – E já te avisei para não te meteres com essas conversas comigo. Olha que lá por eu ter deixado metade dos tomates em Angola não quer dizer que não os tenha no sítio e te afinfe uma galheta! E tu, Engrácia, que mania é essa agora de tapares a barriga?
ECS – Sabe, Coronel, é que tenho vergonha...
CML – Vergonha?!? Então tu mostras as mamas, esfregas a peidola na tromba dos clientes e tens vergonha de mostrar a barriga?
ECS – São coisas minhas...
CML – Eu te digo as “coisas minhas”! Xico, quero ter uma conversinha contigo em particular. E já, filho, ou queres que te leve pela orelha?

Acto 3 – Pai e filho dão outro nome ao conflito de Gerações

CML – Filho, até hoje aceitei as tuas manias todas: deixei que fosses cantor, mesmo tu tendo uma voz que até os cães uivavam; permiti que fizesses essas tatuagens esquerdistas, mesmo a do chinês na nádega; pus-te a dirigir o Teatro, apesar das maiores cenas se passarem nos bastidores! Mas agora a minha paciência infinita acabou-se! Esta peça não lembra nem ao diabo! Será que no teu juízo perfeito achas que as pessoas vêm cá para ouvir coisas como “Memórias inóspitas a reabsorver por um despropositado mas crescente sentimento de culpa”…… és uma besta! Uma grandessíssima besta! Ainda me vais levar à ruína!
XL - Não fora esse descomunal e súbito ataque de cretinice, até suporia que outrora foste bafejado por alguns resquícios de genuína inteligência, acaso me equívoco? Ou terei sido o único a encetar caminhos de vivência mais dúbios?
CML – Já te disse para te pores manso comigo! E fui inteligente, fui! Não me orgulho do que fiz, mas eu era como se fosse um objecto consciente, não conseguia combater. Preferi engolir o meu orgulho (e não só) do que andar feito animal pelo mato, matando a torto e a direito, sujeito a levar um balázio. E depois quem é que te sustentava? Quem te pagava o ténis de marca? E a calcinha da moda? É que podes até ser de esquerda mas vestes-te muito à direita!
XL - A ilusão ilude o saudável, constrange e confunde o insano, a ti tudo isto derrete os teus valores construídos de sacarose quebrada pelo ácido da crítica.
CML – Eu te digo a sacarose! E mais te digo! Se te volto a apanhar enrolado na Engrácia, sou eu pessoalmente que vou contar ao Jacinto! Ele manda aí a claque dos Super Cantantes fazerem-te uma espera e vais ver que nunca mais na vida falas bonito! E viras cantor, pois viras, tens garantida uma carreira de tenor na ópera!
XL – Mas meu progen... pai, isso é uma calún... uma peta!
CML – Qual peta qual carapuça! Deves pensar que és o único a saber coisas intimas das artistas, não? E outra coisa! Quero que digas à Engrácia que não quero cá dessas frescuras de esconder a pança. Como é que permites que ela te trate assim? Quem é o Director do Teatro, ela ou tu?
XL – Mas eu prometi-lhe, pai, é que ela anda cheia de remorsos e anda cada vez mais a falar em purificar os seus pecados, a querer contar ao Jacinto tudo o que se passa aqui, comigo, com o strip e pelos vistos contigo! Não a podemos contrariar, afinal é só uma barriguita balofa que se tapa...
CML – Ai ela anda a fazer ameaças? A mim, Coronel Martim Louceiro? Vamos então ver quem conta o quê...

Acto 4 – A última confissão de Engrácia ao Padre Sevícias?

PS – Boa noite, Engrácia.
ECS - Ahh, como sabias que era eu, querido?
PS - Ora, ora, e cantu cognoscitur avis, até porque Eamdem cantilenam canis, sua tonta… e além disso, não existem muitas pessoas em Paradança a usarem um perfume que se topa a dois quilómetros e a vestirem um vison falsificado. E já te disse que não te quero a tratar-me por tu.
ECS – Olha, olha, faça-se de esquisito. A mim chama-me de canis, cabritus, e mais não sei quê, eu nem o posso tratar por tu. Bem me dizia o Xico e as minhas amigas que você...
PS – O quê???? Mas tu atreveste-te a falar de nós??? Não sabes que um homem da minha posição não pode ser associado a mulheres como tu?
ECS – Como eu??? Muita sorte tem você do meu Jacinto não ter percebido quando eu lhe disse que foi o “Senhor” que me marcou com o crucifixo!
PS - Deixas-me completamente estrepitado com todo esse imbróglio que provocaste... não passas de uma rameira desbocada sua cabra!
ECS – Cabra?!? Sua espécie de demónio de batina! Ando eu aqui a ter de andar com a barriga tapada tal a brutalidade com que me caíste em cima! Mentiste-me ao dizeres que era aquele o caminho da absolvição! Mas estavas certo, não me deste prazer nenhum! É muita língua, muito latim mas a minha absolvição, não a vi. Essa história do “vergastamásio” é outra tanga, a única coisa que tens grande é esse cu disforme! Pois acredita que amanhã, mal o meu Jacinto volte da audição com o Juiz, por causa daquele elefante desdentado, irei-lhe contar tudo sobre nós e sobre os meus outros pecados. Sim, porque o meu homem, à parte os gases, ainda é o único que me respeita nesta terra esquecida do mundo. E porra, estou atrasada para o espectáculo!
PS – Engrácia, tu não nos desgraces! Aberratio ictus!
ECS – Sabes onde podes meter o aberrácio? Sabes? Aí mesmo!

Epílogo – O último espectáculo

Engrácia como que renascera, rebolando-se e esfregando-se no poste como nunca. A alegria que sentia por finalmente contar tudo ao marido tinha-lhe renovado a alma. Quantos erros tinha cometido! Quantos pares não tinha enfiado no Jacinto por engano, por despeito e por ter vontade! Começara por dormir com o Coronel, para poder ter acesso ao Teatro, com o Xico para poder ficar com o papel de actriz principal, com outros para compensar a ausência do Jacinto, sempre envolvido na sua Colectividade, e finalmente com o Padre, que lhe tinha assegurado que seria esse o melhor meio de lavar os seus pecados: o sexo com prazer pelo sexo com dor. E todos eles, até o Padre, estavam hoje ali, assistindo ao seu último espectáculo. Claro que o Jacinto era capaz de reagir mal ao princípio, até era menino para lhe dar uma tareia, mas o risco valia a pena. Naquela noite, Paradança deixaria de alimentar o seu fogo, e voltaria ao seu papel de esposa obediente junto do único homem que nunca a enganara. E como seria bom assistir ao que o marido iria fazer aos que o traíram!

De repente a luz apaga-se! Quando se acende novamente, o horror: a sua barriga exibia, num vermelho vivo, o crucifixo invertido! Uma multidão de rostos conhecidos aponta-lhe o dedo e gritos ecoam do meio da turba enlouquecida:
Gaijo qualquer 1 - É o anti-cristo!!!
CML – Morte ao demónio! É ela a responsável pela crise económica, pelo aumento da gasolina e por termos perdido a guerra colonial!
PS - Amordacem-na, não vá ela lançar obscenidades sobre nós! Mors omnia solvit! Nunc aut nunquam!
XL – Ó meretriz propulsionadora de efémeros afagamentos ao órgão reprodutor! Que sejas obliterada pela audácia da simples existência!
Todos – ÃNH???
XL – Matem a gaija!

Em menos dum nada, e aproveitando a ausência de Jacinto, Engrácia das Coxas Salgadas viu-se no meio duma chuva de pontapés, socos e algumas apalpadelas à mistura. Foi conduzida ao pelourinho da vila e ali sumariamente julgada e condenada por todos os pecados que até então afligiam a população de Paradança. E foi decidido que seria o fogo a lavar a honra daquela terra, num último Auto de Fé.


E assim chegamos ao fim. Ainda nem a fogueira estava ateada e lá estava a Águia , na sua altivez resplandecente, rasgando os céus em círculos meticulosa e elegantemente calculados , num jogo onde o fim inevitável adquire um sabor a morte. Porra, pareço o Xico Louceiro a falar! Perceberam, não perceberam? A Engrácia quinou...


«Este post foi elaborado por RAFEIRO PERFUMADO através de uma colaboração de bloguistas onde o BIGMAC e o OUTRO forneceram as seguintes palavras: Áspide, Reabsorver, Cognoscitur, Ilusão, Águia, Repelente, Alvitrado, Retrógrado, Descomunal e Estripitado. IRRITADINHA e DAMULARUSSA constituíram com as palavras as seguintes frases: “O veneno áspide da tua bondade torna-me a Cleópatra do teu reino”, “Um retrógrado regride radiante ruidosa e renitentemente, enquanto abre um sorriso para o futuro incógnito e definido”, “Anda um gajo a gastar uma batelada de dinheiro em perfumes caros e isto tem um efeito repelente nas gajas!”, “Alvitrado dos intestinos tendo por banda sonora sons abjectos, Engrácia encontrou ali o motivo para pedir o divórcio.”, “A ilusão ilude o saudável, constrange e confunde o insano, a ti tudo isto derrete os teus valores construídos de sacarose quebrada pelo ácido da crítica.”, “Não fora esse descomunal e súbito ataque de cretinice , até suporia que outrora foste bafejado por alguns resquícios de genuína inteligência, acaso me equívoco?”, “Memórias inóspitas a reabsorver por um despropositado mas crescente sentimento de culpa ,…….. és uma besta!”, “Ahh, como sabias que era eu, querido?...Ora, ora E cantu cognoscitur avis, até porque Eamdem cantilenam canis., sua tonta…”, “Deixas-me completamente estrepitado com todo esse imbróglio que provocaste …..não passas de uma rameira desbocada sua cabra!” e “Lá estava a Águia , na sua altivez resplandecente, rasgando os céus em círculos meticulosa e elegantemente calculados , num jogo onde o fim inevitável adquire um sabor a morte.”.»

8 comentários:

Anónimo disse...

«A Engrácia quinou...» Mas a Graça está presente... Ao seu estilo, destilando as palavras sérias numa continuidade descontinuada... Prova que o Lusitano vocabulário dá para tudo...

Saudações em continuidade

Boop disse...

AH!!!!!!!!

Rafeiro Perfumado disse...

Companheiro, diverti-me. E esta iniciativa é mesmo para isso, certo? Um grande abraço!

Fallen Angel disse...

OUTRO texto, OUTRO sorriso meu, outra ronda de parabéns.

E OUTRO abraço, claro. ;-)

Anónimo disse...

obrigada....

ainda estou a sorrir.


brilhante.



Y.

Burrita disse...

Ao Outro deixo aqui outro agradecimento pelas palavras escritas!!
Pergunto, peça de teatro para quando?

sem-comentarios disse...

Esses textos elaborados por vários bloggers é excelente. O história está óptima, com um humor fantástico :))

isabel mendes ferreira disse...

eu?????????????????????


_________________

como assim?




_______________?