segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Rasgos na memoria, ou lucidez inócua?


Caia a tarde, os raios solares já entorpecidos desciam sobre ti iluminando-te o rosto inexpressivo, o olhar apático perdia-se no horizonte , cobria-te uma manta puída pelo uso, segura pelas mãos inertes e engelhadas. A arrogante altivez outrora manifestada esvaíra-se no tempo …ahh, como o tempo nos rouba até a vida . Conheci-te quando? Há 50 anos talvez, chegaste vindo do nada, naquela manhã resplandecente , transportando contigo um mundo de fantasias que não ousaria nunca nem sonhar. Ficaste por uns dias, que se transformaram em meses. O meu irmão Joaquim andava radiante,"fFnalmente uma companhia masculina para me acompanhar nos devaneios", dizia. Os dias foram seguindo o seu percurso pouco rotineiro, a paz que outrora respeitara as nossas vidas, foi remetida para longínquas paragens e a avidez daquele olhar sedento, que em segredo percorria o meu corpo efervescente, foi adquirindo cumplicidade, apesar da tentativa de insana recusa. Como pode provocar os desejos mais violentos de qualquer aberração ou doença acometida, tal olhar? Não…não quero…não!! Passava o tempo, acometido de mil desejos e sensações abjuradas. Aquela noite transbordante de uma luminosidade apaixonante exercera sobre mim um fascínio incomensurável. Tu adormeceras recostado na enorme espreguiçadeira do alpendre e eu, imprudentemente, não resistira a olhar-te de mais perto, parecias agitado, aproximei-me, sentindo cada vez mais próximo o intenso aroma de cada pedaço da tua pele. As mãos tremiam-me, agitadas por uma comoção inevitavelmente estranha, era inegável que desde sempre aquela respiração próxima rondava-a como um abutre obstinado em variações circulares ao redor da sua jugular, e agora que estava ali tão à mercê de mim retraia-me pela ambiguidade do momento, numa luta sem tréguas entre o certo e o errado….."Espera"…e senti as tuas mãos provocadoras tocarem-me, o nosso sangue pulsava na mesma cadencia de um cavalo sem freio correndo em liberdade, "estavas agitado, sonhavas? " - " Não...quando durmo pareço um vulcão, é na lava que adormeço e nas cinzas vou despertando e tu és o meu mais belo despertar…" -"Deixa-me..o meu irmão está a chegar. Pode ver-nos...não…por favor....e tentava libertar-me do teu abraço quente e desejado …"-"Largue-a!" O grito ecoou agressivo e elevador da prudência e do respeito". Era a "nha preta" que vigiava no silêncio da noite." -" Vai dormir 'mammy', não há problema….vai.."Foram tantos os momentos…lembras-te quando por brevíssimos instantes de uma intimidade nunca publicamente havida, me mostraste o teu lado mais execrável , perguntando "mas não se arranja uma mulata?", olhando ironicamente a velha preta que me amamentara e onde nessa negada realeza se erguiam mais e maiores valores, grandeza que havias descoberto abruptamente na noite anterior e, da forma mais vil, vingavas o teu desejo interrompido……como ousaste sequer sugerir? Olhei-te com indignação e tu, ainda em tom provocatório, tal como um aprendiz de feiticeiro, contribui com o seu olhar alaranjado para a efervescência do caldeirão" replicaste -" Que queres, um homem tem as suas necessidades e além demais…bom…tu sabes…!", Odiei-te por isso.
Trimmm…a campainha tocara freneticamente…Devo ter dormido, que sonho estranho…- "Quem é?.."Vem ver os gatos que nasceram esta semana, avó"…..são lindos", gritou… e numa tentativa de segurar o preto que parecia o mais reguila…"cuidado, não agarres o pequeno, olha que a mãe arranha-te"... sonhara...
Agora ali estavas tu, inerte, sem desejos ou tesões contidas, sem brilho, um resto zero onde a soma dos dois foi um nulo resultado. Sem cumplicidades ou afectos, e por um ínfimo instante os nossos olhares voltaram a cruzar-se na mudez da vida. Extraordinário como até naquele silencio no buço pode haver um diálogo intenso. -"Avó vem para dentro,já arrefeceu. Vou fazer um chá para nós .. A agua já borbulha " e sorriu...Borbulha? Pois vai continuar a borbulhar, faz-te à vida!..pensei, antes que a inépcia a invada e a torne insípida, desgastada pelo tempo, sem lugar a retornos do ser-se feliz…..vai sim filha, antes que seja tarde...
E num sussurro imperceptível lançou no vento um "em breve meu amor...em breve..."


"Este post foi elaborado por DAMULARUSSA através de uma colaboração de bloguistas onde a IRRITADINHA e o RAFEIRO PERFUMADO forneceram as seguintes palavras: feiticeiro, vulcão, mulata, abutre, arranha,buço, realeza, borbulha, elevador e doença . BIGMAC e OUTRO constituíram com as palavras as seguintes frases "como um aprendiz de feiticeiro, contribui com o seu olhar alaranjado para a efervescência do caldeirão" "quando durmo pareço um vulcão, é na lava que adormeço e nas cinzas vou despertando", "mas não se arranja uma mulata?" "aquela respiração próxima rondava-a como um abutre obstinado em variações circulares ao redor da sua jugular" "não agarres o pequeno…arranha",Extraordinário como até naquele silencio no buço pode haver um diálogo intenso" "onde nessa negada realeza se erguiam mais e maiores valores", "Borbulha? Pois vai continuar a borbulhar, faz-te à vida!", "o grito ecoou agressivo e elevador da prudência e do respeito", "como pode provocar os desejos mais violentos de qualquer aberração ou doença acometida"

9 comentários:

Fallen Angel disse...

Meus amigos! Mes amis! My girlfriends! Excelente. Ouviram? Leram? Ouleram?

Excelente!

( Forte abraço e uma excelente semana )

lifeyes disse...

Reconheço (culpabilizo-me) quando do 1º post ainda pensei "é o 1º, vai baixar a qualidade" estava errada! Ainda bem!
Parabéns!

Burrita disse...

É bastante curioso com este quinteto funciona, completa-se e ou mesmo tempo complementa-se!
É um enigma para os que deste lado vos lêem…como moldam simples palavras em algo que pode simplesmente ser tudo ou nada! Uma história, uma vida ou simples ficção!
Nós que lemos ficaremos sempre na dúvida…
Peço-vos que continuem a alimentar o poder da imaginação…
Fiquem Bem!

Rafeiro Perfumado disse...

Jove, já tens no "Textos Soltos" as palavras a ti destinadas para fazeres as frases! Nada de piedade com a Irritadinha! ;)

Unknown disse...

Parabéns. A blogoesfera é tão individualista e cheia de egos soltos e marados, que apreciar esta iniciativa é uma lufada de ar fresco. Aprecio este tipo de iniciativas. Têm vida própria. Reveladoras de uma visão abrangente e colectiva.

Um abraço ao colectivo de autores / colaboradores do post,

Irritadinha disse...

Parente desgraçado! Parente era fechar-te numa sala a fazeres premanentes ovelhas! Vil!

Alzira do PVC disse...

Falando em rasgos, lembro-me de rasgados. Não vai um remendozito pró fato de latex? Vendo baratinho.

Uma vez mais, parabéns pelo texto.

Bigmac disse...

Alzira,

A sua veia comercial irá certamente fazer com que a qualidade do Latex pervaleça mesmo dentro de uma teia de arame farpado e... electrificado pela lentidão de exposição à natureza.

Abraço Alzirado,

Alzira do PVC disse...

Vai um fatinho de latex para as suas cruzadas, caro Bigmac?