domingo, 25 de fevereiro de 2007

«É tão curto, tão próximo, tão meticuloso que raramente deixa a infinidade do lato quase senso. Não é comum, mas sente.Sente-se.Senta-te.Ali ficamos»

Numa réstia de noite…

Dois corpos entrelaçados volatilizam-se…quase parados…
Aquele exíguo rectângulo, agora acalorado pelo momento, era um infinito explorado em cada superfície.
Dois vultos desgovernados diluíam os limites da gravidade estouvada pelo espaço.
As mãos incautas, exaustas, desafiavam todos os interiores. Desconfiavam todos os pudores. E poderes.
As bocas alternavam na procura mútua dos oxigénios que sustentassem cada investida pela pele.
Os suores fecundos ardiam na carne já rasgada pelas garras do êxtase.
As ancas agrediam-se. Agradavam-se. Gradavam o desconhecido na morfologia do espasmo.
A cada investida, os sexos confundiam-se com as línguas. Mortas nas palavras, exultadas nos olhos, exaltadas nos gritos que adormeciam os tímpanos.
Já não haviam nem peitos nem costas nem pernas nem braços nem faces. Ou corações…só nos pulmões se cadenciavam as demandas daquelas promíscuas privações encadeadas. Encandeadas.
Já se harmonizavam os esgares.
Já se orquestravam as dores.
Já se molhavam as cores.
Já se bebiam odores.
Já choravam em mares…
Todos os olhares convergiam num denso breu de harmonias imaginárias e galopantes. Murmúrios furtivos que escandalizavam os paradigmas do estar. Do chegar ali. Naquela modorra tão avessa, tão líquida, tão espessa de vagas derramantes na trasfega dos egoísmos partilhados por um só ínfimo de algo que os desprendesse à razão oculta.

Finalmente, o tudo. O Amor precipitado na condensação condenada à sublimação das gotas escorridas pelo cansaço resgatado ao segredo. A fertilidade espalhada por cada um dos sentidos. Os sentidos perdidos por cada um dos medos. Os medos ganhos a cada um dos beijos. Os beijos anulados a cada milésimo, quase a cada segundo…

Numa réstia de madrugada…

Finalmente…

Um só corpo imóvel…arfava no chão gelado.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

«O que varia, avaria. Avaramente.»

Pouco sentido.
Louco. Ávido.
Árido.
Adido.
De joelhos no vértice da angústia, apertava fortemente a cabeça para que as explosões de ânsia não lhe rachassem o crânio de dentro para fora. Cerrava as pálpebras para conter o fogo do olhar, não fosse incendiar o ódio que respirava. E transpirava.

A boca, seca de compaixão, ainda vertia os últimos grãos daquela dedicação convulsa. Inflamava pela aparência vã das melodias irreversíveis da agonia. Agonizava sim…agudizava aquele incómodo silêncio tão completo de delírios próprios e esquecimentos rápidos…os esquecimentos…tão rápidos…tão ríspidos…tão raros…tão esquecidos…

A cada síncope, tentava solver-se em tudo aquilo que nunca foi. Re-solvia-se no que não se resolveu. Escoava a lasciva calma imposta pelo extenuar daquele momento. Daquela magnitude tão centrada no estômago. Ulcerações deixadas ao acaso da proximidade nefasta. Tantas e tantas vezes havia escarnecido das queixas que agora mal se queixava da carne…viva por fora…lívida por dentro (já toda vivida).

Era então que afluíam as emancipações em prantos urgentes que roíam e ruíam as crenças d’outrora. Querenças dum agora tardio no desejo mas tão deleitado na hora. Espampanante. Obsoleto e degradante. Tal como tinha adivinhado nos futuros torrenciados pelo rosto a fora. Tal como sempre esperava de cada vez que falecia pelo desânimo de desfalecer no ânimo.

Inevitável. Intrigante. Intransponível. Irritante. Sempre foi. Estavam ali as palavras a romperem-lhes os lábios, bastava segredá-las…assim, num sopro…assim, num nada…

“Como poderei ser tu, se me desprezas? Como posso amar-me se menosprezas? A maior parte de nós…”

(afinal estava só..no final…era só…dó...)*



*mas também podia ser “ré”, “mi” ou até “si” ;)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

«Ali repousa, ali tranquila, ali chama, ali apaga, mas nunca pousa, nunca aniquila, nunca brasa, e pouco mais acende.»

«E depois, nem sempre as batalhas que reservo comigo, são destravadas por outros. Quanto muito, ganhas. Quase sempre, empatas.»

Um cabrão cheio de bondade que se torce para não se desfigurar num mundo de figuras destorcidas. Ostracizado no próprio desprezo. Empapado em angústias díspares. Desmotivantes, que afastam cada uma das pró acções previstas no marasmo. Revistas no pasmo. Atreitos à fuga…

Assim, o vejo de cada vez que se desfaz perante mim.
Assim, me mente para se demonstrar. De monstro.
Assim, nos abraçamos em despedidas despidas de ódio, mas indiferentes na causa.
Assim, o agrido para não o perder. Para sempre a cura. Para sempre aqui. Extra. Ordinário nas ordens com que nos obriga a ignorar o que se apruma.

Ali…está ele.

A…li.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007


O
riso
emerge
da representação
imaginária desdobrando-se
no próprio sentido da percepção individual.

A sátira da vida contrasta com os valores apreendidos, instiga a reflexão, enraizando-os lúdicamente para que lhes possam extrair todo o significado visualizando novos caminhos que vos negam o senso. Usem!!! Abusem do sarcasmo ao vosso gosto, apresentem-no num prisma de opções pelas quais os vossos seguidores provem o seu sabor procurando a verdade. Esta é uma representação que não quer ser só uma adaptação do antigo, é o significado de tudo, é a preparação do presente com olhar no futuro, é um aviso para gerações vindouras na sua instituição dos códigos de valores. Sorriam! Mas lapidem o seu significado surreal pela soma dos momentos transcendentes que captaram, mesmo que alguns na cegueira possam apelidar-vos de alquimistas das fezes. Palavras gritadas após o término da peça de Angry Vildog, famoso dramaturgo, ao seu grupo de actores num espectaculo de beneficencia em Paradança, sua terra natal...
- Lindo... Lindo... Angry, belas frases Vil...dog... aghrrr... cof... cof! Vociferava exuberante e roucamente Lamule Russeau.
- Lamule, se não fosses tão estapafúrdio, certamente já tinhas sido promovido a encenador, vem cá! Vou curar-te isso com esta receita oriental. Ora bem, aqui diz para apontares o meristema apical, ou seja o bico do supositório para a cavidade recto-anal, fazendo pressão e forçando a entrada pressionando ainda mais, até sentires cócegas no pâncreas e espirrares três vezes seguidas em Mi menor. Afirmou Sophy Sup, resgatada do teatro central de Pequim pelo seu marido algarvio embarcado nos cruzeiros. Como cu*-autora de alguns trechos menos lubrificados da peça, proferia algumas directrizes medicinais ao mesmo tempo que retirava as indumentarias de Engrácia
- Atchum... Atchuimmm... Atchimmmmmmmmmm.
- Se continuares a treinar talvez atinjas o Nirvana, vá, vamos lá outra vez.... Mas vacuidade moço que o mar tá bravo ainda molhas as nalgas! Até parece que foi ontem que te peidaste violentamente.
- Não preciso de chegar ao "nevana" para ser encenador, só tenho de sair desta vila de loucos com saúde, não tenho de mendigar a um bissexual marinheiro e provinciano para me alinhar os olhos em bico. E não precisas de me perguntar se eu sei o que é mendicidade? Claro que sei, Men di cidade, "homem da cidade", dah!
- Cala-te ruminador de riquezas, tu, onde os dias roem os ânus. Outras que tens não usas! Cala-te e cura-te!
- Não desfazendo, minha chinezinha preferida... Mas a chaga é doce.
- Pois cala-te, quando abri o armário, veio assim um cheiro antropomorfo... Faz como o meu marido, fecha-o na gaveta da escolha certa!
- Chega de arestas linguísticas, chega de heresia manuseável, usem o sarcasmo como o sol vos usa, trespassem esses cumes e essas cristas navegando na poesia, vão até ao mar saltando em versos, em palavras que lavram terra! Saiam dessa existência, ouçam a música que atravessa privações, vivam a alegria, consumam amores selvagens, sacrifiquem-se pelo perdurar da vossa arte tão intensamente como a ignoraram até agora! Afirmou Angry interrompendo aquele desventrado bulício rectal.
A sala encheu-se de vazio no caminho iluminado pelo calcorrear da saída. Mesmo lá fora sentia-se o broar temporário das palavras até ao recomeçar. Os sinais das ervas moídas por pegadas desprovidas de vida eram evidentes, arbustos desviavam ramadas da insignificância esparsa. O pó ocre das passadas erráticas entranhava-se na pele e na roupa desfigurando a visão abafada pelo ruído humano da alarvidade tecida numa curta representação artística. E num sussurro imperceptível lançou novamente ao vento "em breve meu amor...em breve... irei chamar-te"
Entre o plácido caminho que silenciava o ruído e a ignorância, passavam esses vultos disformes absorvendo momentos. A exigência era dissimulada na mais profunda inércia perante os movimentos exteriores. Qualquer transeunte que penetrasse na seda urdida pela experiência que o tempo confere seria imediatamente sugado na energia excedente. O brilho que leva à loucura transformar-se-ia na delícia da sensatez. Daí caminhavam procurando restabelecer algo que nem sonhavam, cada vez mais perdidos. Quando voltarem atraídos no desconhecimento, sentindo-se mais fracos, questionarão o que fazem ali...
- Ó tu, que possuis um apetite a caminhar para o opíparo, chega aqui... não receies!
- Como?
- Espero-a desde a primeira vez! Algo terá de ser transmitido e recebido apesar da sua desconhecida surdez só permitir o olhar desatento.
- O quê? Pergunta ela.
- Não sei... Diga-me! Mas calmamente e seja clara.
- Nada lhe tenho a dizer! Responde confusa.
- Se nada tem a dizer siga o seu caminho, porque voltou aqui?
- Tive a sensação que tinha algo para me dizer!
- Nada tenho para lhe dizer! O que procura?
- Perdi-me do grupo que acompanhava.
- Todos se perdem quando passam aqui e nada dizem. Saia dessa vida de silêncio mudo, lembre-se que tem uma vida para contar, dê-lhe significado! Realce-lhe o brilho e a cor. Escreva-a com sangue não para que a leiam mas para que a decorem!
- Quem é você?
- Simplesmente alguém que a ouve muito bem mesmo que esteja na sua paz do silêncio.
- A tua arquitectura mental torna belo o feio, sublime o bonito e transcendente o mundano, já que consegues tanta coisa, será que não me conseguias endireitar os dentes? Ah, lá estão eles... apontando para o grupo ruidoso. Afastou-se sorrindo aridamente do meu desencanto, não seria a última vez.
Não pode ser! Fundia-se o pungente grito nas asas das gargalhadas erguendo-me acima do tudo. Novamente tinha mudado de corpo, novamente teria de nascer protegido pela juba do Leão que já fora, assente nas patas do camelo sulcando aquelas ardentes areias com um só destino, retirar o véu ao conhecimento sedento de atenta lisura, devassar o futuro sem receio do presente. Não pode ser mas é! Gritava no mais profundo frio da alma desmoronando areias seculares que se abriam em segredos ainda hoje desconhecidos pelos crentes ao tentar inventar o nada. Ali estava ela, a paixão, o segredo, a raiva ódio e ciúme, a traição de Deus pela erosão da verdade. Finas areias espalhadas em ondas geometricamente definidas em equações resolvidas. Descoberta pelo grito, recolhida pela razão mas escondida na inexistência da lógica. Observando aquele sublime vapor colorido que me entranhava a essência do ser explicando-me o porquê de toda a descrença, negação descontente de qualquer forma divina apresentada fora da sombra do interesse. Ali estava ela, orgulhosamente superada de virtudes transmitidas pelas paixões e espasmos desgarrados, músculo da sabedoria erguendo o ícone da esplendorosa beleza à sua esperança mais elevada. Nada mais existiria, todo o cortejo dos anos tinha sido imediatamente apagado transformando-se serenamente sem reservas naquela forma limite.
Regressou alguns minutos depois questionando-me:
- Que tenho para te oferecer, que te posso dar que ainda não tenhas tido?
- Simplesmente tu!
- E tu o que tens para me dizer, o que tens para me dar?
- Novamente te digo, nada tenho para te dizer nem para dar, tu és tudo e tudo tens!
- Pois digo que os meus olhos nunca viram um homem, nunca se encheram nem a metade com mais do que a imagem da populaça!
- É só isso que teria de ouvir de ti, não to poderia dizer soltando aos gumes do vento palavras vãs, é isso que procuras! Saberás reconhecê-lo na sua própria grandeza quando todos os teus desejos se afunilarem nos subornos do querer ver, quando o eco do teu querer mesmo após a tua morte for ainda mais escutado no outro mundo.
- Quem és tu? Tenho de perguntar novamente! Quem pensas que és para me transmitir palavras mais importantes e sábias de todas as que ouvi até agora?
- Alguém que te espera pelo mais alongado que a espera tiver, alguém que te receberá sempre jovem mesmo que percas ou renuncies à ávida capa que te conferem os traços e dons da juventude, alguém cujo calor te aquecerá mais do que mil homens friccionando-se no teu querer inconsciente de elogios previsivelmente vaidosos, alguém que te limpa do pudor amargo do pó sujo que respiras e que te revolve as emoções normais devolvendo-as ao verdadeiro voo da imaginação sedenta do sentir. Vem amanhecer da minha noite, onde a morte se finda e a vida se pausa, segue para o negro amanhã, logro do mais brilhante resplandecer gritante, neste vácuo do silêncio da minha existência outorgada em mesclas matizadas com inebriantes perfumes divinos.
- Não posso continuar aqui contigo!
- Eu sei e tu também sabes o que deves fazer.
Redimensionada a consciência reflectida numa única unidade, numa única conversa, que faria além de esperar? Qual o tamanho ilusório do sofrimento agora criado e sentido no depois? Só o tempo irá responder.
Não pode ser! De novo o grito, sentia tudo mais uma vez a transformar-se, da criança que sorria observando o tudo, erguia-se agora a única e majestosa figura possível, eu águia, «Et pluribus unum»... Gritou, distanciando-se de qualquer aproximação do algo mantendo no tudo, olhar imperial. Não pode ser! Quem sou afinal? Perguntava-me nas alturas fundindo com elas todo o conhecimento, revelando a verdade escondida. Pousada observava na sua magnificência trocando-lhe aleatoriamente os 5 ângulos absorvendo o até então invisível reflexo do único sol, Aton. Tudo havia que originava, sustinha e fazia circular vida como no local do sonho, pacientemente elaborado como profecia post eventum.
Menino nascido na areia aquecida no calor do pai Aton, meu menino. És rei!!! Terás esquecido que tal decisão foi sujeita a plebiscito e esmagadoramente reprovada?!? Despe os objectos ordinários da significância e neles descobrirás o sentido onde qualquer Engrácia se encherá de graça balançando na variação positiva do talento. A verdade que vês é aquilo que não consegues explicar a um cego. Vem anjo! Vem descobrir o sentido da existência despudorada e pungente, vem tanger o rasca através do peso das palavras que te procuram... Sequiosas. Vem juntar-te à tua sombra nesta incomensurável clareira de mitos, a sombra errática e vazia de percurso enquanto não a cobrires com a geometria da tua presença. Vem anjo menino. Rei nascido de árida rocha perdida à nascença e separada pelo sol e pelo vento em grãos de areia que se transformam em palavras, nessas palavras que formam frases... em frases que te dão vida... num texto.


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«Este post foi elaborado por BIGMAC através de uma colaboração de bloguistas onde DAMULARUSSA (Vacuidade, Mendicidade, Estapafúrdio, Antropomorfo, Opíparo) e OUTRO (Resplandecer, Mendicidade, Meristema, Plebiscito, Ontem), forneceram as palavras. IRRITADINHA ("Ora bem, aqui diz para apontares o meristema apical, ou seja o bico do supositório para a cavidade recto-anal, fazendo pressão e forçando a entrada pressionando ainda mais, até sentires cócegas no pâncreas e espirrares três vezes seguidas em Mi menor.", "Vacuidade moço que o mar tá bravo ainda molhas as nalgas!", "Vem amanhecer da minha noite, onde a morte se finda e a vida se pausa, segue para o negro amanhã logro de mais brilhante resplandecer gritante, neste vácuo do silêncio que a minha existência outorgada em mesclas matizadas com inebriantes perfumes divinos.", "Se eu sei o que é mendicidade? Claro que sei, Men di cidade, "homem da cidade", dah!", "A tua arquitectura mental torna belo o feio, sublime o bonito e transcendente o mundano, já que consegues tanta coisa, será que não me conseguias endireitar os dentes?") e RAFEIRO PERFUMADO ("Se não fosses tão espatafúrdio, certamente já tinhas sido promovido.", "E quando abri o armário, veio assim um cheiro a antropomorfo...", "Terás esquecido que tal decisão foi sujeita a plebiscito e esmagadoramente reprovada?!?", "Ó tu, que possuis um apetite a caminhar para o opíparo, chega aqui.", "Até parece que foi ontem que te peidaste violentamente."), constituíram as frases.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

A Última tentação de uma data de gente

Esta história que vos vou contar teve lugar nos recônditos de Portugal, mais precisamente na vila de Paradança, em tempos não muito distantes, ou talvez ainda mais perto. Como é que me chegou ao conhecimento? Há quem diga que foi o vento, há quem diga que foi uma águia, há também quem diga que foi tudo fruto duma imaginação doentia e de misturas alcoólicas pouco inteligentes. Fiquemo-nos pela hipótese da águia, que ainda consegue ser a mais credível.

Aviso desde já que quem estiver com pressa, à rasquinha para ir ao WC, com companhia à espera na cama ou desejoso de ver o Tempo de Antena na televisão, é melhor nem começar a ler, que isto é grande como o caraças, com nada mais nada menos que 4 Actos, um Epílogo, umas palavras finais de circunstância e a sempre imprescindível apresentação das personagens:

Engrácia das Coxas Salgadas, figura central desta história, atroz actriz de teatro, triste dona de casa mas espantosa na arte de abanar as glândulas mamárias. Tem um fraquinho por frases elaboradas, não por as compreender mas por achar que quem as profere é possuidor de inteligência superior, logo capaz de compreender o seu talento como actriz. Vive um casamento conturbado com o Jacinto, o que a leva a procurar fora de casa a lenha para o fogo que sente dentro de si.
Jacinto Galo da Costa, honesto traficante de marfim nas horas vagas, respeitado e temido dirigente da “Filarmónica e Cantares Populares”, que lhe ocupa praticamente todo o tempo, levando-o a descurar as necessidades carnais da sua esposa, bem como a ser o único habitante de Paradança a desconhecer a vida tripla da mesma. Ah, e sofre tanto de gases, que de tal alvitrado dos intestinos tendo por banda sonora sons abjectos, Engrácia encontrou ali o motivo para pedir o divórcio. Apenas à conta de muita prenda e de muita porrada a conseguiu a custo demover.
Padre Sevícias, respeitado sacerdote de credo desconhecido, apologista da máxima “faz o que te digo e não olhes para o que eu faço”. O latim é a sua salvação, não pela sabedoria que a língua encerra mas por lhe permitir rematar as conversas com algo ininteligível e logo irrefutável. Rumores afirmam que entre o mulherio de Paradança é conhecido como “vergastamásio saltitão”.
Coronel Martim Louceiro, ganhou a patente a jogar à sueca, pois fez toda a guerra do Ultramar escondido nas camaratas, pagando o anonimato com limpezas sub-umbigais, tendo mesmo assim sido condecorado pelos seus ferimentos em combate (causados quando dormia num veículo que servia de alvo para o treino de artilharia). É o dono do Teatro Frio do Dia (que funciona até às 20:32) e do Bordel Apito da Noite (aberto das 20:47 até de madrugada ou o último cliente se cansar). Em ambos os estabelecimentos trabalham o seu filho e Engrácia.
Xico Louceiro, filho do Coronel, assumido intelectual de esquerda, ostentando com orgulho as suas tatuagens de Marx, Lenine e Trotsky. Tem outra tatuagem, parecida com Mao Tse Tung, mas não tem tanto orgulho devido ao local onde esta foi colocada. É o director do Teatro, lugar obtido por cunha do pai. Gosta de falar uma linguagem só sua, constando que leu pelo menos três vezes o dicionário, por forma a aumentar a sua bagagem vocabular. Quem o compreende diz que fala bonito...

Acto 1 – Jacinto procura conselho junto do Padre Sevícias

Jacinto Galo Costa – Padre, ajude-me! Ajude-me que eu até lhe dou um lugarzinho vitalício lá na colectividade, para assistir de camarote aos ensaios do nosso coro “As Tronchudas de Paradança”.
Padre Sevícias – Homem de Deus, diz-me lá o que te preocupa e não me tentes com essas mer... com lugares cativos, que as minhas recompensas são tudo menos materiais.
JGC - Padre, eu vi com estes olhinhos que a terra há-de comer! A minha Engrácia foi possuída!
PS – Tens a certeza, Jacinto? E por quem desta vez? Quer dizer, por alguma entidade maléfica?
JGC – Qual maléfica! Ela está possuída pela religião! Então não é que lhe apareceu marcado na barriga um crucifixo, olhe, igualzinho ao que o senhor aí tem pendurado? Eu já estava habituado a que de vez em quando lhe aparecesse uma marca parecida com a cara dum tipo de barbas, agora um crucifixo?!? Ainda por cima de pés para o ar! O senhor disse “desta vez”?
PS – Não, percebeste mal. Mas isso é maravilhoso, só pode significar que a tua mulher é visitada por alguma entidade divina. E tu, que fizeste?
JGC – Dei-lhe logo um enxerto de porrada, que eu não quero lá santas em casa. Sempre ouvi dizer que as santinhas não gostam de brincadeira e depois como é que eu me aliviava??? Se agora já a custa a convencer, imagine se ela se torna santa! Ainda me lembro da vez que ela teve aquela infecçãozita e fiquei dois meses à mingua, dois meses! Fiquei a conhecer de cor cada azulejo da casa de banho! E o gato ainda hoje me olha de lado!
PS – Ó Jacinto, isso é uma sine capite fabula. Fazes favor deixa a Engrácia em paz. Asseguro-te que o mais certo é em breve o crucifixo passar a estar na posição correcta. É tudo uma questão de vontade do Senhor.
JGC – E as algarviadas que ela me diz? Não percebo nada, até parece o seu Padre a falar! E logo hoje que eu me tinha apinocado todo. Anda um gajo a gastar uma batelada de dinheiro em perfumes caros e isto tem um efeito repelente nas gajas!
PS – Isso são manifestações que te transcendem, Jacinto. Quando assim for, ajoelha-te e reza com ela. E agora vai-te, meu filho, que se faz tarde. Ah, e manda esse perfume para o lixo, que até a mim me custa estar ao pé de ti.
JGC – Mas eu hoje não pus perfume...

Acto 2 – O Teatro Frio do Dia tenta ensaiar a sua nova peça, “Cleópatra e as serpentes brincalhonas”

Colega de Engrácia – Então, Engrácia, ontem “confessaste-te”?
Engrácia das Coxas Salgadas– Ó filha, várias vezes. Estou aqui que não posso da coluna. O sacana do padre tem é de perder a mania de saltar de cima do armário! Diz que pode não me dar prazer nenhum, mas pelo menos deixa-me espalmadinha! Começo a duvidar se este será o melhor caminho para ter a absolvição pelos meus pecados!
Xico Louceiro – As gentis espécimes do género venusiano pretendem no espaço-temporal presente encetar o ensaio ou optaremos por uma cúpula colectiva e intemporal?
ECS – Ai o menino Xico tem uma forma de falar que me derrete toda! Mas fique sossegadinho que ainda estamos a aquecer...
XL – Sei bem o que almejais, minha bípede provida de glândulas mamárias celestiais, mas no momento tenho de insistir que vos limitais à recitação da partitura.
ECS- Hã?
XL – Lê o texto, Engrácia. Começa em “O veneno áspide...”
ECS – “O veneno áspide da tua bondade torna-me a Cleópatra do teu reino”. E isto quer dizer o quê, Xiquinho?
Coronel Martim Louceiro – Quer dizer que se ele puder te enfia a áspide pelo teu reino adentro, Engrácia.
XL – Pai, não lhe tinha já dito que não gosto que me interrompa os ensaios?
CML – E eu não te tinha já dito que quero é que tu metas as gaijas a esfregarem-se sensualmente no poste? Porra, Xico, os animais que cá vêm querem é mamas, estão-se a borrifar para os lirismos!
XL - Um retrógrado regride radiante ruidosa e renitentemente, enquanto abre um sorriso para o futuro incógnito e definido.
CML – E já te avisei para não te meteres com essas conversas comigo. Olha que lá por eu ter deixado metade dos tomates em Angola não quer dizer que não os tenha no sítio e te afinfe uma galheta! E tu, Engrácia, que mania é essa agora de tapares a barriga?
ECS – Sabe, Coronel, é que tenho vergonha...
CML – Vergonha?!? Então tu mostras as mamas, esfregas a peidola na tromba dos clientes e tens vergonha de mostrar a barriga?
ECS – São coisas minhas...
CML – Eu te digo as “coisas minhas”! Xico, quero ter uma conversinha contigo em particular. E já, filho, ou queres que te leve pela orelha?

Acto 3 – Pai e filho dão outro nome ao conflito de Gerações

CML – Filho, até hoje aceitei as tuas manias todas: deixei que fosses cantor, mesmo tu tendo uma voz que até os cães uivavam; permiti que fizesses essas tatuagens esquerdistas, mesmo a do chinês na nádega; pus-te a dirigir o Teatro, apesar das maiores cenas se passarem nos bastidores! Mas agora a minha paciência infinita acabou-se! Esta peça não lembra nem ao diabo! Será que no teu juízo perfeito achas que as pessoas vêm cá para ouvir coisas como “Memórias inóspitas a reabsorver por um despropositado mas crescente sentimento de culpa”…… és uma besta! Uma grandessíssima besta! Ainda me vais levar à ruína!
XL - Não fora esse descomunal e súbito ataque de cretinice, até suporia que outrora foste bafejado por alguns resquícios de genuína inteligência, acaso me equívoco? Ou terei sido o único a encetar caminhos de vivência mais dúbios?
CML – Já te disse para te pores manso comigo! E fui inteligente, fui! Não me orgulho do que fiz, mas eu era como se fosse um objecto consciente, não conseguia combater. Preferi engolir o meu orgulho (e não só) do que andar feito animal pelo mato, matando a torto e a direito, sujeito a levar um balázio. E depois quem é que te sustentava? Quem te pagava o ténis de marca? E a calcinha da moda? É que podes até ser de esquerda mas vestes-te muito à direita!
XL - A ilusão ilude o saudável, constrange e confunde o insano, a ti tudo isto derrete os teus valores construídos de sacarose quebrada pelo ácido da crítica.
CML – Eu te digo a sacarose! E mais te digo! Se te volto a apanhar enrolado na Engrácia, sou eu pessoalmente que vou contar ao Jacinto! Ele manda aí a claque dos Super Cantantes fazerem-te uma espera e vais ver que nunca mais na vida falas bonito! E viras cantor, pois viras, tens garantida uma carreira de tenor na ópera!
XL – Mas meu progen... pai, isso é uma calún... uma peta!
CML – Qual peta qual carapuça! Deves pensar que és o único a saber coisas intimas das artistas, não? E outra coisa! Quero que digas à Engrácia que não quero cá dessas frescuras de esconder a pança. Como é que permites que ela te trate assim? Quem é o Director do Teatro, ela ou tu?
XL – Mas eu prometi-lhe, pai, é que ela anda cheia de remorsos e anda cada vez mais a falar em purificar os seus pecados, a querer contar ao Jacinto tudo o que se passa aqui, comigo, com o strip e pelos vistos contigo! Não a podemos contrariar, afinal é só uma barriguita balofa que se tapa...
CML – Ai ela anda a fazer ameaças? A mim, Coronel Martim Louceiro? Vamos então ver quem conta o quê...

Acto 4 – A última confissão de Engrácia ao Padre Sevícias?

PS – Boa noite, Engrácia.
ECS - Ahh, como sabias que era eu, querido?
PS - Ora, ora, e cantu cognoscitur avis, até porque Eamdem cantilenam canis, sua tonta… e além disso, não existem muitas pessoas em Paradança a usarem um perfume que se topa a dois quilómetros e a vestirem um vison falsificado. E já te disse que não te quero a tratar-me por tu.
ECS – Olha, olha, faça-se de esquisito. A mim chama-me de canis, cabritus, e mais não sei quê, eu nem o posso tratar por tu. Bem me dizia o Xico e as minhas amigas que você...
PS – O quê???? Mas tu atreveste-te a falar de nós??? Não sabes que um homem da minha posição não pode ser associado a mulheres como tu?
ECS – Como eu??? Muita sorte tem você do meu Jacinto não ter percebido quando eu lhe disse que foi o “Senhor” que me marcou com o crucifixo!
PS - Deixas-me completamente estrepitado com todo esse imbróglio que provocaste... não passas de uma rameira desbocada sua cabra!
ECS – Cabra?!? Sua espécie de demónio de batina! Ando eu aqui a ter de andar com a barriga tapada tal a brutalidade com que me caíste em cima! Mentiste-me ao dizeres que era aquele o caminho da absolvição! Mas estavas certo, não me deste prazer nenhum! É muita língua, muito latim mas a minha absolvição, não a vi. Essa história do “vergastamásio” é outra tanga, a única coisa que tens grande é esse cu disforme! Pois acredita que amanhã, mal o meu Jacinto volte da audição com o Juiz, por causa daquele elefante desdentado, irei-lhe contar tudo sobre nós e sobre os meus outros pecados. Sim, porque o meu homem, à parte os gases, ainda é o único que me respeita nesta terra esquecida do mundo. E porra, estou atrasada para o espectáculo!
PS – Engrácia, tu não nos desgraces! Aberratio ictus!
ECS – Sabes onde podes meter o aberrácio? Sabes? Aí mesmo!

Epílogo – O último espectáculo

Engrácia como que renascera, rebolando-se e esfregando-se no poste como nunca. A alegria que sentia por finalmente contar tudo ao marido tinha-lhe renovado a alma. Quantos erros tinha cometido! Quantos pares não tinha enfiado no Jacinto por engano, por despeito e por ter vontade! Começara por dormir com o Coronel, para poder ter acesso ao Teatro, com o Xico para poder ficar com o papel de actriz principal, com outros para compensar a ausência do Jacinto, sempre envolvido na sua Colectividade, e finalmente com o Padre, que lhe tinha assegurado que seria esse o melhor meio de lavar os seus pecados: o sexo com prazer pelo sexo com dor. E todos eles, até o Padre, estavam hoje ali, assistindo ao seu último espectáculo. Claro que o Jacinto era capaz de reagir mal ao princípio, até era menino para lhe dar uma tareia, mas o risco valia a pena. Naquela noite, Paradança deixaria de alimentar o seu fogo, e voltaria ao seu papel de esposa obediente junto do único homem que nunca a enganara. E como seria bom assistir ao que o marido iria fazer aos que o traíram!

De repente a luz apaga-se! Quando se acende novamente, o horror: a sua barriga exibia, num vermelho vivo, o crucifixo invertido! Uma multidão de rostos conhecidos aponta-lhe o dedo e gritos ecoam do meio da turba enlouquecida:
Gaijo qualquer 1 - É o anti-cristo!!!
CML – Morte ao demónio! É ela a responsável pela crise económica, pelo aumento da gasolina e por termos perdido a guerra colonial!
PS - Amordacem-na, não vá ela lançar obscenidades sobre nós! Mors omnia solvit! Nunc aut nunquam!
XL – Ó meretriz propulsionadora de efémeros afagamentos ao órgão reprodutor! Que sejas obliterada pela audácia da simples existência!
Todos – ÃNH???
XL – Matem a gaija!

Em menos dum nada, e aproveitando a ausência de Jacinto, Engrácia das Coxas Salgadas viu-se no meio duma chuva de pontapés, socos e algumas apalpadelas à mistura. Foi conduzida ao pelourinho da vila e ali sumariamente julgada e condenada por todos os pecados que até então afligiam a população de Paradança. E foi decidido que seria o fogo a lavar a honra daquela terra, num último Auto de Fé.


E assim chegamos ao fim. Ainda nem a fogueira estava ateada e lá estava a Águia , na sua altivez resplandecente, rasgando os céus em círculos meticulosa e elegantemente calculados , num jogo onde o fim inevitável adquire um sabor a morte. Porra, pareço o Xico Louceiro a falar! Perceberam, não perceberam? A Engrácia quinou...


«Este post foi elaborado por RAFEIRO PERFUMADO através de uma colaboração de bloguistas onde o BIGMAC e o OUTRO forneceram as seguintes palavras: Áspide, Reabsorver, Cognoscitur, Ilusão, Águia, Repelente, Alvitrado, Retrógrado, Descomunal e Estripitado. IRRITADINHA e DAMULARUSSA constituíram com as palavras as seguintes frases: “O veneno áspide da tua bondade torna-me a Cleópatra do teu reino”, “Um retrógrado regride radiante ruidosa e renitentemente, enquanto abre um sorriso para o futuro incógnito e definido”, “Anda um gajo a gastar uma batelada de dinheiro em perfumes caros e isto tem um efeito repelente nas gajas!”, “Alvitrado dos intestinos tendo por banda sonora sons abjectos, Engrácia encontrou ali o motivo para pedir o divórcio.”, “A ilusão ilude o saudável, constrange e confunde o insano, a ti tudo isto derrete os teus valores construídos de sacarose quebrada pelo ácido da crítica.”, “Não fora esse descomunal e súbito ataque de cretinice , até suporia que outrora foste bafejado por alguns resquícios de genuína inteligência, acaso me equívoco?”, “Memórias inóspitas a reabsorver por um despropositado mas crescente sentimento de culpa ,…….. és uma besta!”, “Ahh, como sabias que era eu, querido?...Ora, ora E cantu cognoscitur avis, até porque Eamdem cantilenam canis., sua tonta…”, “Deixas-me completamente estrepitado com todo esse imbróglio que provocaste …..não passas de uma rameira desbocada sua cabra!” e “Lá estava a Águia , na sua altivez resplandecente, rasgando os céus em círculos meticulosa e elegantemente calculados , num jogo onde o fim inevitável adquire um sabor a morte.”.»